Verde, Caminhável e Privada: Uma História Não Contada da Cidade de Lavasa
O artigo de hoje é uma tradução do “Green, Walkable, Private: An Untold (and Unfinished) Story of Lavasa City”, publicado originalmente em inglês pelos nossos amigos na Free Cities Foundation. É uma apresentação completa da cidade privada de Lavasa, na Índia. Aproveite a leitura!
Cerca de 200 quilômetros a sudeste de Mumbai fica uma cidade que você só esperaria encontrar na costa do Mediterrâneo. Modelada no resort italiano de Portofino, com suas casas coloridas, ruas de paralelepípedos e encostas verdes imaculadas, Lavasa é um contraste gritante com as cidades caóticas e barulhentas pelas quais a Índia é conhecida. Ela afirma ser a cidade mais sustentável do país – e seus 2.000 residentes podem testemunhar isso.
Mas Lavasa é única não apenas devido à sua atmosfera descontraída e plano diretor premiado - a cidade também é totalmente privada. Desde o abastecimento de água e eletricidade a escolas e hospitais, todos os serviços públicos aqui são prestados de forma privada. Lavasa, no entanto, não é um dos condomínios fechados da Índia com guardas truculentos e pátios privados. A maior parte de seus residentes são ex-aldeões que agora trabalham para a Lavasa enquanto seus filhos vão para uma creche de língua inglesa gratuitamente. Quando Lavasa, em 2011, se tornou alvo de um ataque ideológico, esses ex-aldeões se levantaram para defender 'seu paraíso'.
Quem construirá as estradas – e limpará as favelas?

Acertar as cidades é um desafio universal, mas para países em rápida urbanização, como a Índia, é particularmente terrível. Densidade extrema combinada com infraestrutura precária cria todos os tipos de pragas urbanas, desde congestionamentos rodoviários severos e níveis notórios de poluição do ar até favelas, pobreza e crime. A cada minuto, 25 a 30 índios se mudam da área rural para a cidade. Se a demanda vertiginosa não for atendida com oferta adequada, a situação pode sair do controle (isso já está acontecendo em Mumbai, onde mais da metade da população vive em favelas, ou na capital Nova Delhi, oficialmente a cidade mais poluída do mundo).
Soluções de cima para baixo, como a Missão Cidades Inteligentes que gastou 12 bilhões de dólares por todo o país, mostraram resultados inexpressivos. Outra abordagem, que parece promissora, é terceirizar o desenvolvimento para o setor privado. A Lei da Zona Econômica Especial de 2005, juntamente com uma série de reformas em nível regional, abriram várias janelas de oportunidade, e alguns desenvolvedores passaram gradualmente da entrega de casas para a criação de cidades inteiras.
O exemplo clássico disso é Gurgaon, uma cidade satélite a sudoeste de Delhi. Regras de aquisição de terras relaxadas, juntamente com a ausência do governo municipal, permitiram que várias corporações (incluindo marcas como Maruti Suzuki e General Electric) construíssem em conjunto uma cidade autônoma. Com uma população de mais de um milhão, Gurgaon é um importante centro financeiro e industrial, uma cidade com a terceira maior renda per capita e o maior Índice de Desenvolvimento Humano do país. Dito isto, Gurgaon pode não ser o lugar mais agradável para se viver. Ela é famosa por sua infraestrutura urbana caótica e desigual, como água, eletricidade e esgoto - resultado da fragmentação da cidade entre vários proprietários privados.
Mas e se toda a cidade pudesse ser projetada, construída, gerenciada e governada pela mesma empresa - seria possível repetir o impressionante sucesso económico de Gurgaon, evitando as suas armadilhas? Para Ajit Gulabchand, chefe da empresa centenária Hindustan Construction Company, a pergunta já possuía uma resposta: ele sonhava em criar um modelo replicável para as cidades do futuro – e empoderar milhões de indianos “permitindo que eles se governassem”. Quando o estado de Maharashtra aprovou a lei 'Hill Station', renunciando às leis de zoneamento e teto de terreno para certas áreas e dando aos desenvolvedores isenções fiscais substanciais, ele viu isso como uma oportunidade de implementar sua visão.
Bons parques e boa governança: como a Lavasa ganha dinheiro

Para a maioria dos indianos, a Hindustan Construction Company era conhecida por megaprojetos como rodovias e represas. Em 2009, no entanto, eles almejavam algo completamente diferente: uma cidade totalmente nova. Uma cidade com bairros caminháveis, vastas áreas verdes e um forte senso de comunidade que receberia 240.000 residentes, criaria 80.000 empregos e atrairia dois milhões de turistas a cada ano.
O plano diretor da HOK, um escritório de arquitetura de renome mundial, refletiu os princípios do Novo Urbanismo e recebeu aclamação internacional. Um ex-planejador da Autoridade Metropolitana de Mumbai foi contratado para implementá-lo. Após quarenta anos de serviço público, ele admitiu desfrutar de mais liberdade criativa do que nunca ao construir a Lavasa. O papel do prefeito foi desempenhado pelo City Manager. Scot Wrighton, um acadêmico experiente e profissional com experiência na gestão de várias cidades dos Estados Unidos, foi contratado para esta função.
Uma cidade privada, como qualquer empresa privada, deve ter um modelo de negócios sustentável. O de Lavasa dependia de três fluxos de receita: venda de casas, cobrança de taxas de serviço e aluguel de espaços não residenciais para fins de varejo, comerciais, recreativos e outros. Mas o que a cidade de Lavasa oferecia ia além do mercado imobiliário. O produto principal não foi o plano diretor ou as instalações de alto nível – foi o modelo inovador de governança da cidade possibilitado por seu status de Autoridade Especial de Planejamento. Entre outras regalias, isto permitia à cidade vender e arrendar terras sem pedir permissão ao governo.
Em Lavasa, as empresas privadas não apenas mantinham espaços públicos como parques e estradas e forneciam eletricidade e abastecimento de água, mas também administravam escolas e hospitais e outros serviços tradicionalmente operados pelo estado – praticamente tudo, exceto correios e delegacias de polícia. Além disso, muitos serviços foram oferecidos gratuitamente , incluindo água potável, reciclagem de lixo, cuidados básicos de saúde e ambulância, creche e escola de língua inglesa e diversos cursos de capacitação profissional. Mas o mais importante é que a Lavasa oferecia emprego a trabalhadores pouco qualificados, tanto aldeões locais quanto vindos de outros lugares.
Buscando atrair a massa crítica de residentes, a cidade fez parceria com várias instituições educacionais, como a Ecole Hôtelière de Lausanne e a Christ University, com sede em Bangalor. Outro parceiro-chave, Ashiana Senior Living, tornou-se o lar de dezenas de indianos aposentados. O diretor de cinema e ex-consultor ambiental do Banco Mundial, Suresh K. Goswami, depois de ter morado em muitos lugares de Londres à Nigéria, sentiu o desejo de se aposentar na Índia, mas nenhuma cidade parecia hospitaleira o suficiente - até que ele encontrou Lavasa. Depois de dez anos morando lá, ele a considera “a primeira e mais bela cidade inteligente da Índia”.
A batalha para salvar Lavasa

A cidade privada única chamou a atenção do público assim que o projeto foi lançado em 2002. Em 2010, a primeira fase estava quase concluída e a população havia ultrapassado 10.000 pessoas. Naquela época, Lavasa era uma comunidade viva, um polo imobiliário e um polo turístico. Tudo isso ficou ameaçado quando o desenvolvimento foi abruptamente congelado após uma campanha política. A luta contra a Lavasa foi liderada pela Aliança Nacional do Movimento Popular, de esquerda, que viu as Zonas Econômicas Especiais (“zonas exploradoras especiais”, como adoram chamar) sendo uma personificação de tudo o que eles se opõem. Por meio de protestos de rua, queixas legais e ativismo da mídia, eles conseguiram paralisar o projeto por motivos ambientais.
Essa seria uma história estilo ‘’saia fora do meu gramado’’ se não fosse pelo que aconteceu a seguir. A decisão judicial foi recebida com contra-protestos de moradores, incluindo representantes eleitos de todas as 18 aldeias que compõem Lavasa. No Tribunal Superior de Bombaim, eles testemunharam que a Lavasa beneficiou o meio ambiente – principalmente por meio do plantio de 600.000 novas árvores – e de modo geral tornou suas vidas melhores. “Quando Lavasa chegou, nossa vida melhorou”, relata um ex-agricultor. Outro reclamou que a mídia ouviu um pequeno grupo de ativistas de fora, enquanto as mil famílias locais não puderam opinar. Acabar com o projeto, eles temiam, tiraria sua fonte de renda e acabaria com suas chances de sair da pobreza.
Um ano depois, a Lavasa conseguiu o licenciamento ambiental e a construção foi retomada. No entanto, um número crítico de investidores havia desistido até então. Na década seguinte em que o projeto ficou no limbo, os moradores de Lavasa se recusaram a desistir de tentar reviver a cidade. A petição online para “salvar Lavasa” no Change.org ganhou quase 24.000 assinaturas. Em 2021, os primeiros vislumbres de esperança surgiram quando um acordo foi finalmente fechado entre um novo investidor, a Darwin Platform Infrastructure Ltd., e um grupo de credores. O novo investidor garantiu prontamente que tinha “um plano ambicioso e de longo prazo para a Lavasa Smart City”.
O que vem por aí?

A história da Lavasa permanece inacabada. Por um lado, ela demonstra a procura evidente por soluções urbanas inovadoras em países em rápida urbanização como a Índia. Por outro lado, também destaca obstáculos institucionais generalizados enfrentados por visionários que apresentam tais propostas não convencionais. Acima de tudo, é a história de milhares de índios cujas vidas melhoraram com Lavasa – e que, contra todas as probabilidades, venceram a batalha por seu “paraíso”, como disse um de meus entrevistados. O interesse de investidores e residentes em potencial é uma indicação clara de que o conceito de cidade como serviço - uma cidade em que o modelo de governança é uma parte tão essencial do pacote quanto a infraestrutura física - tem futuro na Índia e em outras economias em rápido crescimento.
Traduzido do inglês por Henrique S. Oliveira
Este artigo é baseado em “A Tale of One City. Lavasa as a Coasian Prototype of a Private Urban Development”, um capítulo em Institutions and Incentives in Public Policy: An Analytical Assessment of Non-Market Decision-Making (Rowman & Littlefield, 2022).